3 de out. de 2010

OS DENEGRIDOS

Por Guilherme Lentz, direto da Beatles Brasil

Tudo que se diz sobre os Beatles é pouco.

Formados ao longo da segunda metade da década de 1950, os Beatles desbravaram mais territórios do que é possível enumerar. Sua obra reuniu a tradição musical inglesa, o rock´n´roll, os grupos vocais americanos, incorporando a essa mistura novos instrumentos, novas formas de arranjo, novas tecnologias de estúdio e de palco, especialmente desenvolvida por eles ou para eles. Nunca se fecharam em rótulos nem repetiram receitas de sucesso. Tendo levado a música popular além dos limites conhecidos, não hesitaram em incorporar elementos da tradição oriental, da nascente música eletrônica ou de inúmeras vanguardas com que tomaram contato. Chegaram ao sucesso com muita persistência, vencendo muitas dificuldades, mas conquistaram a Europa e, após romper a xenofobia norte-americana, o mundo. Em um dos constantes momentos de auge da carreira, quando poderiam tranquilamente se debruçar sobre as próprias glórias, os Beatles tiveram a coragem de se separar, e cada um seguiu seu caminho, em uma jornada que honra tudo o que eles fizeram, ao mesmo tempo em que representa uma ruptura com o que eles foram.

Ringo Starr construiu uma carreira marcada pela participação dos mais geniais músicos de várias gerações. Fez também experimentos como ator. Pelas facilidades e dificuldades de sua carreira, passou com graça e leveza, erguendo um conjunto sólido e respeitável de criações. No final da década de 1980, estreou sua All Starr Band, com que encantou o mundo mais uma vez, em shows memoráveis, ao mesmo tempo em que manteve a produção de álbuns em estúdio. Aos 70 anos, Ringo continua em plena atividade, unindo o vigor de um jovem à sabedoria de um profeta.

George Harrison tornou-se um artista muito singular. Após participar dos Beatles e ser sozinho responsável pela introdução da cultura indiana no mundo ocidental, apresentou o espantoso álbum triplo “All things must pass”, que deu início a uma sequência de trabalhos muito elogiados. Quando surgiu a necessidade, foi pioneiro no uso do rock´n´roll para causas beneficentes, através de seu memorável Concerto para Bangladesh. Aventurou-se no cinema, contribuindo muito para a carreira dos respeitados comediantes ingleses do Monty Python. Desgostoso com os rumos do mundo da música, tornou-se cada vez mais recluso em sua propriedade, Friar Park, de onde saía para raras, mas deslumbrantes aparições, como quando liderou o super-grupo Traveling Wilburys, ao lado de Bob Dylan e Roy Orbison. Abatido por um câncer, George foi levado de nós muito cedo, em 2 001, com apenas 57 anos. A religiosidade que o acompanhou ao longo de toda a sua vida, porém, permitiu que ele enfrentasse essa passagem com serenidade, deixando ao mundo a certeza de uma vida plena.

Após os Beatles, Paul McCartney não se intimidou. Na liderança de sua nova banda, Wings, percorreu o mundo, atravessando fronteiras físicas, filosóficas, musicais, políticas. Como artista solo, ergueu um corpo sem semelhança na história humana, abrangendo o rock tradicional, a música erudita, a poesia, o cinema, as artes plásticas e mesmo as transações comerciais. Em tudo o que faz, Paul é o mais bem sucedido sob qualquer critério imaginável. Mesmo assim, quando foi indagado sobre qual teria sido sua maior conquista, Paul não piscou: “Minha maior obra é minha família”. É com esse tipo de material que os Beatles foram feitos.

John Lennon, após se consagrar como criança, rebelde, roqueiro, compositor, cantor, arranjador, poeta, produtor, ator, desenhista, amante, marido, ativista e pai, ousou caminhar entre os homens comuns, mas foi covardemente alvejado em frente a seu lar. Mesmo em sua partida, deixou lições. Sua maior obra é sua vida. Sua morte deixou muitos projetos inacabados e promessas a se cumprirem. A saudade deixada por ele, porém, fala em nós, nos incitando a levar adiante o sonho de uma criação sem fronteiras, unindo todas as artes, todas as formas de linguagem, todas as crenças, todos os povos, todas as pessoas, em uma só realidade de amor. O legado de John Lennon é um incomparável monumento, que nos lembra, em cada aspecto, da infinita capacidade humana para ser luz. We a ll shine on.

Dessa saga, participam ainda muitas pessoas valorosas, como George Martin, Pete Best, Brian Epstein, Yoko Ono, Linda, Maureen, Barbara, Olivia, Mal Evans, Billy Preston, entre tantas outras, todas elas com sua própria contribuição.

Diante de tudo isso, é pouco, muito pouco dizer que os Beatles foram a maior banda de rock de todos os tempos. A obra dos Beatles vai além de tudo o que se conhecia antes deles. Ela engloba as artes gráficas, a moda, o cinema, a dança, a arquitetura, a filosofia de vida, a alma humana, a ecologia e muito mais. Musicalmente, eles são inexplicáveis, transcendentais. Eles são uma força da natureza, uma manifestação do poder divino através do mais admirável feito humano, a arte.

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